sábado, 21 de junho de 2008

Pelo direito à diferença...





"Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sózinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?"

Fernando Pessoa

domingo, 15 de junho de 2008

Pensar a Medicina

Excerto do livro que estou a ler actualmente - “Loucos são os Outros” do Psiquiatra Jaime Milheiro, publicado no ano 2000 pela editora “Fim de Século”.


Pensar a Medicina

No fim do século mais científico da História, temos igualmente a impressão de estar no fim duma época quanto à teoria e prática da Medicina e quanto à concepção da Saúde/Doença. Por várias razões, mas sobretudo pelas bastante previsíveis e em vários ângulos anunciadas mudanças de entendimento sobre o modo de funcionar do ser humano, provindas de aprofundamentos recentes. Estaremos no fim duma época quanto às considerações fundamentais sobre o conjunto funcionante que cada indivíduo representa e também quanto ao que daí resultará sobre a prática clínica. Reflectir sobre isso interessa aos médicos, aos doentes, a toda a gente.

I

Como funciona o ser humano? Porque funciona o ser humano, o que o faz funcionar? Por estar vivo, por obedecer à fisiologia, aos princípios da vida...será uma resposta um tanto simplória, concordaremos, além de pouco estimulante para quem tiver a obrigação profissional de sobre isso reflectir. E o médico vê-se obrigado a fazê-lo, porque a sua prática diária vive impregnada de perguntas deste tipo, decorrentes: porque adoeceu aquela pessoa, porque se alterou o funcionamento que até então proporcionava sentimentos de Saúde, como se desmembrou tudo isso?

Evidentemente, é sempre possível evitar a reflexão, no médico ou no doente (pensar dói muitas vezes, ou é inútil), remete-se para um “isso não é comigo”, reduzindo a preocupação apenas à forma de tratar a úlcera ou a bronquite. É tentador afirmar: “sou um técnico, ou ... sou um doente... só me preocupo com isso.” Mas tentar corrigir o defeito do móvel sem pensar na interligação das gavetas , nem no movimento geral da sua construção, vai ser cada vez menos satisfatório, porque se vai sedimentando um sentimento natural de pesquisa em toda a gente. O refúgio banal de atribuir causalidades externas a tudo o que se passa, vai notoriamente perdendo terreno, na cultura. As doenças obedecerão, nesse tipo de pensamento, na realidade efectiva ou na realidade simbólica, ao esquema bacteriano descoberto por Pasteur: vêm de fora. Extrapolando das bactérias propriamente ditas, para muitas outras razões análogas habitualmente utilizadas, as doenças, neste modelo “bacteriano”, serão produto dum corpo estranho, dum invasor, gerador da “infecção” naquele órgão. Competirá à medicina, como objectivo final, a esforçada descoberta do antibiótico suficientemente eficaz para o liquidar. Temos todos (médicos, doentes e candidatos a esses dois estados) este esquema de tal forma montado dentro de nós, apreendêmo-lo e conservámo-lo com tal intensidade, que sem darmos por isso constantemente o supomos e utilizamos. Mesmo em circunstância onde é totalmente absurdo fazê-lo. Verdadeiro automatismo ou reflexo condicionado, com enorme sucesso em múltiplas situações, na medicina, na cirurgia, desse sucesso colhemos apressada justificação para continuar.

Mas hoje não chega obviamente erradicar a bactéria, ou carpinteirar o órgão.

II

Essas leituras, extremamente parcelares, vêm sendo substituídas progressivamente por outras que procuram estudar, compreender e tratar o doente sem o excluir da doença, na génese, no trajecto e na finalização. A doença deixa de ser um corpo estranho, uma “bactéria” hospedada num “órgão”, susceptível de ser posta na rua, para ser considerada um processo geral psicossomático. Sempre!

As grelhas de pensamento que proporcionaram ciências actuantes na brilhante “medicina do órgão” que temos vindo a conhecer, as tecnologias aplicadas à terapêutica que muito justificadamente têm espantado a humanidade e vão continuar a fazê-lo, vêm-se hoje obrigadas a essa enorme revisão. É que os avanços definidos pelas linhas que marcaram o nosso tempo, se afunilaram numa faixa cada vez mais estreita e se afastaram muitíssimo do sofrimento próprio do portador individualizado. Excessivamente cega, impessoal, essa faixa encaminhou-se na prática para o maquinal ossificado, que, embora tecnicamente perfeito, ultrapassou o risco vermelho e quase caiu em zona de completa artificialidade. Tornou-se ao mesmo tempo muito complacente de si mesma, nada do doente, escurecendo-se cada vez mais no computador, se não houver correcção de rota. Conhecimentos e desenvolvimentos não põem em causa a sua validade, mas questionam a sua possibilidade de integração no conjunto da Pessoa. Áreas múltiplas, nas ciências físicas, nas ciências humanas, nas ciências psicológicas, no infinitamente pequeno, na vertente orgânica mensurável em grupo e susceptível de comparação, na vertente mental incomparável entre indivíduos, têm aberto portas impensáveis até há pouco. Verifica-se hoje que, muito mais do que as partes ou a soma delas, a grande questão é o funcionamento global interior, com regras e princípios essenciais, mal conhecidos ainda, mas em pleno movimento de descoberta.

Nessa encruzilhada nos encontramos hoje, na encruzilhada da globalização. Curiosamente, retorna-se desse modo à medicina anterior a este século, à medicina anterior à “medicina de órgão”, conduzindo no entanto na bagagem a ciência entretanto adquirida.

III

Cada novo processo terapêutico, mesmo eficaz, terá sempre efeito temporário porque não invalida o funcionamento descompensado, físico ou mental, que dentro de si o doente contém e a doença sinaliza. A terapêutica adia, compensa ou substitui, mas nada resolve se os mecanismos interiores, fisiológicos, psicológicos, não forem alterados. Comprova-se agora o que toda a gente sabia, mas a cultura deste século ilusoriamente procurou desfazer: consertar por um lado equivale a romper por outro, se nada mudar no contexto da pessoa. A ciência médica inúmeras vezes esqueceu isto, junto de si própria e junto dos doentes, nas famílias, na opinião pública, mais vincadamente ainda na tão propagandeada “medicina de ponta”. Culturalmente intoxicados, por conceitos terapêuticos grandiosos e por secreto desejo de imortalidade, todos embarcamos alegremente nessa cumplicidade e participamos altivamente nos milhões gastos em zonas inúteis, ou no benefício duma industria farmacêutica cada vez mais voraz e lucrativa. Há uma enorme desproporção entre o aproveitamento afectivo e a justa racionalidade nos objectivos terapêuticos, que inconscientemente se alimenta, ou sobrealimenta, no dia-a-dia. Ter consciência disso, dizê-lo abertamente, só pode ser útil e pedagógico, embora por norma se faça justamente o contrário para não ferir o estabelecido.

IV

A angustia médica é quase sempre idêntica à do doente, nessa procura excessiva. Por isso o médico colabora prazenteiramente e desagua no “sou técnico...nada mais do que isso”. Cumpridas da sua parte as baterias sobre estômagos, corações ou cérebros, segundo a arte, nada mais se lhe poderá pedir ou assacar. É tentador e muito mais fácil. Pragmatismos deste tipo servem e tranquilizam, em ambas as direcções.

Estamos na verdade de tal forma condicionados pela tecnologia, pela noção bacteriana da doença, pela busca do “antibiótico” físico ou mental, pelo isolamento do órgão, que em muitos locais, até os processos sistémicos já bem conhecidos são vistos deformadamente como novos órgãos! Como se fossem outros órgãos. O sistema imunitário, por exemplo, global e globalizador, movido emocionalmente, “psico-imunitário” como tudo indica, é muito facilmente considerado por muitos outro órgão, que se divide e isola. Atribuem-se-lhe nesse caso as funções específicas clássicas, contrariando tudo o que dele já se sabe como “gestor” das razões íntimas da pessoa, com influências bem conhecidas na génese de muitas doenças, cancro incluído.

V

O narcisismo pessoal ou profissional verte-se muitas vezes no discurso megalómano de ilusões, ao certificar a pequenez e a limitação que nos caracteriza.

Toda a ciência médica está a evoluir implacavelmente, no sentido que referimos. Mas, como sempre aconteceu na história das ciências e das ideias, os avanços acarretam perdas, sobretudo perdas de ilusões, quando obrigam a novas leituras. Mudam necessidades, são por isso bastante difíceis de instalar.”



Há tempos escrevi aqui alguns artigos sobre “Saúde Integral” onde abordei, do modo limitado que é possível a um leigo fazê-lo, alguns destes temas. É pois com especial prazer e contentamento, que publico agora este texto de um reconhecidíssimo Psiquiatra português.

Não posso deixar de sentir um misto de alegria e alívio, ao constatar a existência de personalidades como a de Jaime Milheiro, atentas, questionadoras, interventivas e transformadoras das leituras e mentalidades, que por vício ou preguiça, se instalaram e cristalizaram perigosamente, ao longo dos tempos na nossa sociedade.

Mudanças são necessárias e urgentes, todos o reconhecemos, mas elas não se fazem se não pusermos em prática a capacidade questionadora que Deus nos deu. A todos!

Bem-haja Dr. Jaime Milheiro, entre outras coisas, pela lição de coragem e de ousadia sempre necessárias nos processos de mudança, mas também pela pertinência de um texto ao qual ninguém pode ficar indiferente.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Marrocos - Maio 2008

Uma viagem muito para além da viagem em si!







Do meu ponto de vista, de quem já viajou alguma coisa, a viagem começa e acaba em cada um de nós. Os países, a música, os pratos típicos desconhecidos, são como facetas pessoais, ocultas ou ainda não exploradas. De certo modo, somos todos viajantes à procura de nós próprios, ainda que, muitas vezes, sob o pretexto ou através da procura exterior.

Marrocos foi uma viagem que não vou esquecer!

Inch' Alla!