domingo, 15 de junho de 2008

Pensar a Medicina

Excerto do livro que estou a ler actualmente - “Loucos são os Outros” do Psiquiatra Jaime Milheiro, publicado no ano 2000 pela editora “Fim de Século”.


Pensar a Medicina

No fim do século mais científico da História, temos igualmente a impressão de estar no fim duma época quanto à teoria e prática da Medicina e quanto à concepção da Saúde/Doença. Por várias razões, mas sobretudo pelas bastante previsíveis e em vários ângulos anunciadas mudanças de entendimento sobre o modo de funcionar do ser humano, provindas de aprofundamentos recentes. Estaremos no fim duma época quanto às considerações fundamentais sobre o conjunto funcionante que cada indivíduo representa e também quanto ao que daí resultará sobre a prática clínica. Reflectir sobre isso interessa aos médicos, aos doentes, a toda a gente.

I

Como funciona o ser humano? Porque funciona o ser humano, o que o faz funcionar? Por estar vivo, por obedecer à fisiologia, aos princípios da vida...será uma resposta um tanto simplória, concordaremos, além de pouco estimulante para quem tiver a obrigação profissional de sobre isso reflectir. E o médico vê-se obrigado a fazê-lo, porque a sua prática diária vive impregnada de perguntas deste tipo, decorrentes: porque adoeceu aquela pessoa, porque se alterou o funcionamento que até então proporcionava sentimentos de Saúde, como se desmembrou tudo isso?

Evidentemente, é sempre possível evitar a reflexão, no médico ou no doente (pensar dói muitas vezes, ou é inútil), remete-se para um “isso não é comigo”, reduzindo a preocupação apenas à forma de tratar a úlcera ou a bronquite. É tentador afirmar: “sou um técnico, ou ... sou um doente... só me preocupo com isso.” Mas tentar corrigir o defeito do móvel sem pensar na interligação das gavetas , nem no movimento geral da sua construção, vai ser cada vez menos satisfatório, porque se vai sedimentando um sentimento natural de pesquisa em toda a gente. O refúgio banal de atribuir causalidades externas a tudo o que se passa, vai notoriamente perdendo terreno, na cultura. As doenças obedecerão, nesse tipo de pensamento, na realidade efectiva ou na realidade simbólica, ao esquema bacteriano descoberto por Pasteur: vêm de fora. Extrapolando das bactérias propriamente ditas, para muitas outras razões análogas habitualmente utilizadas, as doenças, neste modelo “bacteriano”, serão produto dum corpo estranho, dum invasor, gerador da “infecção” naquele órgão. Competirá à medicina, como objectivo final, a esforçada descoberta do antibiótico suficientemente eficaz para o liquidar. Temos todos (médicos, doentes e candidatos a esses dois estados) este esquema de tal forma montado dentro de nós, apreendêmo-lo e conservámo-lo com tal intensidade, que sem darmos por isso constantemente o supomos e utilizamos. Mesmo em circunstância onde é totalmente absurdo fazê-lo. Verdadeiro automatismo ou reflexo condicionado, com enorme sucesso em múltiplas situações, na medicina, na cirurgia, desse sucesso colhemos apressada justificação para continuar.

Mas hoje não chega obviamente erradicar a bactéria, ou carpinteirar o órgão.

II

Essas leituras, extremamente parcelares, vêm sendo substituídas progressivamente por outras que procuram estudar, compreender e tratar o doente sem o excluir da doença, na génese, no trajecto e na finalização. A doença deixa de ser um corpo estranho, uma “bactéria” hospedada num “órgão”, susceptível de ser posta na rua, para ser considerada um processo geral psicossomático. Sempre!

As grelhas de pensamento que proporcionaram ciências actuantes na brilhante “medicina do órgão” que temos vindo a conhecer, as tecnologias aplicadas à terapêutica que muito justificadamente têm espantado a humanidade e vão continuar a fazê-lo, vêm-se hoje obrigadas a essa enorme revisão. É que os avanços definidos pelas linhas que marcaram o nosso tempo, se afunilaram numa faixa cada vez mais estreita e se afastaram muitíssimo do sofrimento próprio do portador individualizado. Excessivamente cega, impessoal, essa faixa encaminhou-se na prática para o maquinal ossificado, que, embora tecnicamente perfeito, ultrapassou o risco vermelho e quase caiu em zona de completa artificialidade. Tornou-se ao mesmo tempo muito complacente de si mesma, nada do doente, escurecendo-se cada vez mais no computador, se não houver correcção de rota. Conhecimentos e desenvolvimentos não põem em causa a sua validade, mas questionam a sua possibilidade de integração no conjunto da Pessoa. Áreas múltiplas, nas ciências físicas, nas ciências humanas, nas ciências psicológicas, no infinitamente pequeno, na vertente orgânica mensurável em grupo e susceptível de comparação, na vertente mental incomparável entre indivíduos, têm aberto portas impensáveis até há pouco. Verifica-se hoje que, muito mais do que as partes ou a soma delas, a grande questão é o funcionamento global interior, com regras e princípios essenciais, mal conhecidos ainda, mas em pleno movimento de descoberta.

Nessa encruzilhada nos encontramos hoje, na encruzilhada da globalização. Curiosamente, retorna-se desse modo à medicina anterior a este século, à medicina anterior à “medicina de órgão”, conduzindo no entanto na bagagem a ciência entretanto adquirida.

III

Cada novo processo terapêutico, mesmo eficaz, terá sempre efeito temporário porque não invalida o funcionamento descompensado, físico ou mental, que dentro de si o doente contém e a doença sinaliza. A terapêutica adia, compensa ou substitui, mas nada resolve se os mecanismos interiores, fisiológicos, psicológicos, não forem alterados. Comprova-se agora o que toda a gente sabia, mas a cultura deste século ilusoriamente procurou desfazer: consertar por um lado equivale a romper por outro, se nada mudar no contexto da pessoa. A ciência médica inúmeras vezes esqueceu isto, junto de si própria e junto dos doentes, nas famílias, na opinião pública, mais vincadamente ainda na tão propagandeada “medicina de ponta”. Culturalmente intoxicados, por conceitos terapêuticos grandiosos e por secreto desejo de imortalidade, todos embarcamos alegremente nessa cumplicidade e participamos altivamente nos milhões gastos em zonas inúteis, ou no benefício duma industria farmacêutica cada vez mais voraz e lucrativa. Há uma enorme desproporção entre o aproveitamento afectivo e a justa racionalidade nos objectivos terapêuticos, que inconscientemente se alimenta, ou sobrealimenta, no dia-a-dia. Ter consciência disso, dizê-lo abertamente, só pode ser útil e pedagógico, embora por norma se faça justamente o contrário para não ferir o estabelecido.

IV

A angustia médica é quase sempre idêntica à do doente, nessa procura excessiva. Por isso o médico colabora prazenteiramente e desagua no “sou técnico...nada mais do que isso”. Cumpridas da sua parte as baterias sobre estômagos, corações ou cérebros, segundo a arte, nada mais se lhe poderá pedir ou assacar. É tentador e muito mais fácil. Pragmatismos deste tipo servem e tranquilizam, em ambas as direcções.

Estamos na verdade de tal forma condicionados pela tecnologia, pela noção bacteriana da doença, pela busca do “antibiótico” físico ou mental, pelo isolamento do órgão, que em muitos locais, até os processos sistémicos já bem conhecidos são vistos deformadamente como novos órgãos! Como se fossem outros órgãos. O sistema imunitário, por exemplo, global e globalizador, movido emocionalmente, “psico-imunitário” como tudo indica, é muito facilmente considerado por muitos outro órgão, que se divide e isola. Atribuem-se-lhe nesse caso as funções específicas clássicas, contrariando tudo o que dele já se sabe como “gestor” das razões íntimas da pessoa, com influências bem conhecidas na génese de muitas doenças, cancro incluído.

V

O narcisismo pessoal ou profissional verte-se muitas vezes no discurso megalómano de ilusões, ao certificar a pequenez e a limitação que nos caracteriza.

Toda a ciência médica está a evoluir implacavelmente, no sentido que referimos. Mas, como sempre aconteceu na história das ciências e das ideias, os avanços acarretam perdas, sobretudo perdas de ilusões, quando obrigam a novas leituras. Mudam necessidades, são por isso bastante difíceis de instalar.”



Há tempos escrevi aqui alguns artigos sobre “Saúde Integral” onde abordei, do modo limitado que é possível a um leigo fazê-lo, alguns destes temas. É pois com especial prazer e contentamento, que publico agora este texto de um reconhecidíssimo Psiquiatra português.

Não posso deixar de sentir um misto de alegria e alívio, ao constatar a existência de personalidades como a de Jaime Milheiro, atentas, questionadoras, interventivas e transformadoras das leituras e mentalidades, que por vício ou preguiça, se instalaram e cristalizaram perigosamente, ao longo dos tempos na nossa sociedade.

Mudanças são necessárias e urgentes, todos o reconhecemos, mas elas não se fazem se não pusermos em prática a capacidade questionadora que Deus nos deu. A todos!

Bem-haja Dr. Jaime Milheiro, entre outras coisas, pela lição de coragem e de ousadia sempre necessárias nos processos de mudança, mas também pela pertinência de um texto ao qual ninguém pode ficar indiferente.

10 comentários:

Rui leprechaun disse...

Excelente!

E aquilo que o médico português afirma nada mais é do que corroborar, afinal, as mais antigas terapias conhecidas, mormente as medicinas tradicional chinesa e ayurvédica.

De certa forma, o mesmo se pode dizer da medicina hipocrática, baseada no poder curativo da natureza ("vis medicatrix naturae").

Tudo isto justifica que tais conhecimentos devam ser cada vez mais integrados na medicina convencional, libertando-a das concepções inteiramente erróneas da doença como processo exterior e alheio à pessoa, mas recuperando o célebre aforismo de Claude Bernard e que Pasteur repetiu:

O micróbio não é nada, o terreno [organismo] é tudo!

Fátima Lopes disse...

Leprechaun,
(o gnomo que vê para lá da floresta..;))

Nem mais! Um certo "regresso ao passado" Ele próprio o afirma ao dizer: "Curiosamente, retorna-se desse modo à medicina anterior a este século, à medicina anterior à “medicina de órgão”, conduzindo no entanto na bagagem ciência entretanto adquirida."

(Este século ainda vai espantar muita gente!...) ;)

João Matos disse...

Estamos perante ideias um pouco na linha do pensamento de Lou Marinoff ou de um velho amigo meu, o José Luís Pais Ribeiro.

Leia-se "Plato, Not Prozac" ("Mais Platão, Menos Prozac", na versão portuguesa) do primeiro ou "Psicologia e Saúde" do último, publicados, respectivamente e se não estou em erro, em 1999 e 1998. Aqui o português antecipou-se ao americano!

Isto apenas se nos restringirmos à medicina e aos modos de a exercer ou à psicologia da saúde e aos modos de "ver" e pensar a dita.

Trata-se, a meu ver, de um certo "retorno ao futuro" pós-positivista...

Fátima Lopes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Fátima Lopes disse...

Bem vindo João Matos,

Gostei da forma como terminou o seu comentário: "Trata-se, a meu ver, de um certo "retorno ao futuro" pós-positivista..." :)

Não li nenhum dos livros que refere mas li um outro do Lou Marinoff e conheço o conceito.

Ainda bem que há pensadores assim!

Rui leprechaun disse...

Ainda a propósito deste tema, veja-se esta notícia aqui comentada no fórum "Sombra":

Médicos tratam com êxito um doente com células clonadas

Ou seja, os tais avanços da ciência que só confirmam do empirismo a excelência!

Ou a sã filosofia...

Rui leprechaun

(...de quem saudável vivia! :))

Fátima Lopes disse...

Rui,

Obrigada pelo link: excelente notícia e execelente também o teu comentário no fórum ;)

("Ainda há esperança. O mundo ainda pula e avança!..." foi o titulo do
1º post deste blog ;))

alf disse...

Eu penso que temos de olhar par ao corpo como uma máquina, mas não uma máquina «burra» como um carro, mas uma máquina com inteligência e recursos.

Para os problemas de cancro, ninguém tem solução que se conheça; a medicina não faz pior que as naturoterapias.

O doente deve ter presente que ninguém tem a solução e que ele deve procurar fazer algo para ajudar o seu próprio corpo. Sem desespero, afinal nós não somos eternos.

Tenho conhecido pessoas que têm cancros que eu sei que, pelos processos conhecidos, não poderão fugir ao que os espera; mas vejo-os sempre na esperança de que «este tratamento» é que vai resultar. É sempre ilusão, mas vou dizer-lhes o quê, vendo-lhes os olhos a brilharem sob o fogo da esperança que se recusa a morrer?

Eu já passei por isto. Já lá vão 9 anos. A medicina certamente que ajudou, sem a operação não teria tido hipóteses. Duvido que alguma outra medicina alternativa pudesse ter feito por mim o que a medicina convencinal fez.

Eu também fiz por mim; geri a mente e o corpo como pude para combater o tumor; e talvez tenha tido sorte: será que os 30 dias que passei a ser alimentado exclusivamente a soro fisiológico glucosado (devido a uma complicação da operação) foram mais eficientes do que qualquer quimioterapia?

Mas há, felizmente, muitos outros que tiveram o mesmo que eu, foram operados como eu mas sem problemas, e estão bem - sem nunca terem passado por mais nada do que pelos tratamentos da medicina.

portanto, eu penso que a Medicina faz o que está ao seu alcance fazer. O resto será connosco.

Rui leprechaun disse...

Eu também fiz por mim; geri a mente e o corpo como pude para combater o tumor.


Exacto! Mas é justamente essa união daquilo que nos é exterior - o tratamento médico, convencional ou não - e aquilo que sendo interior de nós depende - a forma como vivemos e pensamos a doença - que constitui a terapia integral ou holística cada vez mais falada.

A este respeito, como em tantos outros campos da ciência, o importante é abrir e não fechar vias, ousando reconhecer a presente insuficiência do conhecimento para assim recusar dogmas únicos de saúde, porque esta nunca pode ser confinada às melhores técnicas exteriores disponíveis.

De certa forma, morre ou vive quem assim o escolhe ou, talvez melhor dito, sente que tem essa escolha e a aceita.

A diferença mais substancial entre a medicina quimioterapêutica e as terapias milenares tradicionais é o modo como o Ser Humano aí é encarado, já que corpo e alma não são entidades passivas nem os diversos órgãos são meras peças mecânicas que se consertam e remendam para sempre ou até nova avaria.

Esse conceito de inteligência celular ou do poder auto-regenerador do organismo está presente nas outras medicinas, muito mais espirituais e integrais nesse sentido.

Daí, ser desejável o mais possível uma perfeita cooperação dos vários saberes médicos, como felizmente já se vai fazendo em algumas clínicas e hospitais.

A este respeito, eis um belíssimo exemplo da colaboração entre o Budismo milenar e a moderna ciência:

Mind & Life Institute

Rui leprechaun disse...

Ó puladora Senhora... avançada goleadora! :)

A bióloga Granada acrescentou já mais notícias, e eu também, ao post inicial, agora mais no âmbito da velhinha fitoterapia, que continua de pedra e cal como se vê.

A este respeito, e porque cursei medicina durante alguns anos, esta infeliz exclusão, que ainda de certo modo se verifica, entre os saberes científicos e os empíricos faz-me recordar um episódio terrível sobre a introdução do leite em pó para alimentar os lactentes nos casos em que a mãe não o podia fazer.

Muito antes desses leites existirem, podia recorrer-se a amas de leite ou ao leite animal convenientemente diluído, etc. Claro que no Oriente havia ainda os leites de soja e de cereais, em especial o de arroz, só mais recentemente cá chegados.

Mas com o seu aparecimento, o marketing estendeu-se à substituição do aleitamento materno pelo artificial, o que teve consequências muito negativas em alguns países menos desenvolvidos, já que é importante utilizar a diluição correcta e um leite excessivamente "rico" pode provocar desidratação fatal ou intoxicação hepática e renal nos bebés.

Tudo isto vem a propósito da necessidade de se respeitar o saber empírico milenar das diversas culturas e tradições, não pretendendo substituir de chofre essas práticas pela moderna terapia ocidental, como também Mao Tsé-Tung pretendeu em relação à medicina tradicional chinesa, vista como demasiado ligada a velhos conceitos pouco revolucionários.

Daí o grande valor de todas estas descobertas que são apenas a confirmação de que a natureza cura, tanto a interior do nosso corpo como a exterior das plantas. Aqui, o papel do médico nunca pode ser o de se opor a essa cura natural, mas simplesmente ajudá-la e suplementá-la consoante for preciso.

E isto ainda sem falar nessa outra terapia mais inteligente da Mind-Body Medicine, que começa agora a ser cada vez mais falada e corresponde até a esta afirmação desassombrada do polémico "Segredo":

Tenha pensamentos de perfeição. A doença não consegue existir num corpo que tem pensamentos harmoniosos.