Satish Kumar tem 75 anos e viajou de comboio de Londres até
Lisboa para dizer que temos de ir mais devagar para chegar mais longe. Em 2011, este professor no Schumacher College, no Sul de Inglaterra, e director
da revista Ressurgence esteve na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, para
falar do livro Small is Beautiful, de E. F. Shumacher. Na mala trouxe a
inspiração da Natureza e das palavras de Mahatma Ghandi e Martin Luther
King.
Acredita que a solução para a crise no mundo está no respeito pela Natureza, no amor e na confiança. Caminhou 13 mil quilómetros, sem dinheiro, numa das maiores peregrinações de sempre pela paz mundial.
Acredita que a solução para a crise no mundo está no respeito pela Natureza, no amor e na confiança. Caminhou 13 mil quilómetros, sem dinheiro, numa das maiores peregrinações de sempre pela paz mundial.
Transcrevo a seguir a entrevista que nos deixou:
"Quantas vezes já o chamaram de ingénuo ou irrealista?
Muitas, muitas vezes. Políticos, presidentes de empresas, estudiosos, até
jornalistas... (risos). Dizem que as minhas palavras são impossíveis e que sou
demasiado inocente e idealista. Mas a minha resposta é: o que têm feito os
realistas? O mundo tem sido governado por eles e hoje temos crise económica,
crise ambiental, guerras no Afeganistão, Iraque e Líbia, pobreza. O nosso
realismo não é sustentável. Pusemos um preço em tudo. A floresta tem preço, os
rios, a terra, tudo se tornou uma mercadoria. Talvez tenha chegado o momento de
os idealistas fazerem alguma coisa. Esta é a minha resposta. Se sou idealista,
não faz mal. A sustentabilidade exige um bocado de idealismo, de inocência.
Então, qual a resposta de um idealista à crise actual?
Esta não é uma crise económica, é uma crise do dinheiro. E o dinheiro é
apenas uma ideia, um número no computador. Os realistas criaram este problema
artificial e estão preocupados com a crise, voam pelo mundo, vão a Bruxelas,
reúnem-se com banqueiros. Mas a terra continua a produzir alimentos, as
oliveiras a dar azeite, as vacas a dar leite e os seres humanos não perderam as
suas capacidades. Eu diria, regressemos à natureza. A natureza tem a solução,
dá-nos tudo o que precisamos, alimentos, roupas, casas, sapatos, amor, poesia,
arte.
Como por essa ideia nas mãos dos líderes políticos?
Por exemplo, Portugal devia ter mais dos seus próprios alimentos, roupas,
sapatos, mobília, tecnologia. A globalização da economia é um problema. Estamos
importando tantos produtos da China... Tudo isso se traduz em combustíveis
fósseis para o transporte, com efeitos no clima. Além do mais, estamos chegando
a um pico do petróleo. Quando se esgotar o que faremos? A economia local deveria
ser a verdadeira economia; a economia global seria como a fina cobertura de
açúcar em cima de um bolo, com apenas entre dez a 20% da economia.
Mas em muitos casos é mais barato importar...
Sim, mais barato em termos de dinheiro, mas não em termos de meio ambiente,
porque não adicionamos todos os custos. Este é um desafio que lanço aos
políticos, empresas, cientistas e jornalistas: o valor deve ser colocado no
solo, nos animais, árvores e rios, nas pessoas, não no dinheiro. Se não o
fizermos, dentro de cem anos teremos uma crise ainda maior. O dinheiro é apenas
um bocado de papel ou de cartão, uma conta no banco. É uma medida da riqueza,
como quando usamos uma fita métrica e dizemos que esta mesa tem dois metros de
comprimento por um de largura. É da mesa que precisamos, mas para nós a fita
métrica é mais importante. O dinheiro é útil, claro, mas é só isso.
Parece uma ideia difícil de concretizar. Por onde
começar?
Mudando a forma de pensar. Podemos imprimir notas, criar dinheiro criando
mais dívida. Mas se poluirmos os nossos rios e envenenarmos as nossas terras,
não os podemos substituir. Devemos viver como peregrinos, não como turistas. O
turista é egocêntrico, quer algo para ele próprio, bons hotéis, restaurantes e
lojas. A sua atitude é a exigência, quer sempre mais e melhor. O hotel, o táxi
ou o serviço não era bom o suficiente. O peregrino é humilde, deixa uma pegada
leve na Terra, respeita a árvore e agradece-lhe pela sombra e frutos. A mente
egocêntrica tem de mudar para respeitarmos a natureza.
Hoje conhecemos melhor as marcas dos automóveis do que os nomes das
árvores...
Exactamente. Por isso, antes de mais nada precisamos trazer a natureza para a
cidade, promover uma literatura ecológica. Não conhecemos a natureza porque a
exilamos, temos medo dela. Não saímos de casa porque está demasiado frio, neve
ou chuva. Precisamos estar confortáveis, civilizados. Na verdade, somos
demasiado civilizados... (risos). As pessoas das cidades, como Lisboa, precisam
abrir o coração à vida selvagem, caminhar na natureza. O fim-de-semana devia ter
três dias para que, pelo menos, um dia pudéssemos andar a pé no campo. Mas não
de carro porque assim não se vê nada. Quando caminhamos vemos as flores, a
relva, as borboletas, as abelhas. Vemos e experimentamos tudo, não é um
conhecimento dos livros.
Mas podemos estar na natureza e não reconhecer a importância de uma
borboleta ou de uma abelha.
Não basta observar a natureza como um objecto de estudo. Isso é uma separação
muito dualista. Só valorizamos a natureza se a experimentarmos, se nos tornarmos
parte dela. A natureza não está só lá fora, nas árvores, montanhas, rios e
animais. Nós somos a natureza. E ela tem valor intrínseco. Falamos de direitos
humanos, mas também precisamos falar dos direitos da Natureza. Os rios têm o
direito de se manterem limpos, as florestas têm o direito a permanecer de
pé.
Quando tinha quatro ou cinco anos, a sua mãe disse-lhe para começar a
andar e aprender com a natureza. Para nós será demasiado tarde?
Tal como minha mãe me ensinou a andar na natureza, gostaria que o mesmo
acontecesse na nossa sociedade. Devemos educar as nossas crianças no amor pela
natureza, aprendendo na natureza e não sobre a natureza, com livros e
computadores. Gostaria de ver os pais levar os filhos para a natureza e a
deixá-los subir nas árvores, escalar montanhas e nadar nos rios. Para as
crianças não é tarde demais, elas estão prontas para isso. Talvez para os
adultos seja tarde, até porque eles têm medo da natureza. Mas até eles podem
descobrir que passariam a estar mais inspirados, teriam mais poesia, música e
arte. Nossa sociedade está se tornando cada vez mais banal e prosaica.
Toda a sua vida você caminhou. Qual foi a viagem mais
importante?
A mais importante caminhada que fiz, da Índia para a América (de 1962 a
1965), foi inspirada pelo filósofo britânico Bertrand Russell, que protestou
contra as armas nucleares. Quando ele tinha 90 anos foi preso por isso. Uma
manhã, quando eu tinha 25t anos e bebia café numa esplanada com um amigo,
disse-lhe: "Aqui está um homem que, aos 90 anos, vai para a prisão pela paz no
mundo. O que estamos, nós, jovens, a fazer aqui sentados a beber café?". Isso
foi a inspiração. Eu e meu amigo fomos aconselhados por ela a partir sem
dinheiro, porque a paz vem da confiança e a raiz da guerra é o medo. Se queremos
paz temos de ter confiança nas pessoas, na natureza, no universo. Durante dois
anos e meio caminhei 13 mil quilómetros sem qualquer dinheiro.
E como conseguiu sobreviver?
Fiquei em casa de pessoas que ia conhecendo. Quando não tinha dinheiro dizia
que era a minha oportunidade para fazer jejum. Se não tinha um tecto, era a
oportunidade para dormir sob as estrelas. Antes de partir, na Índia,
disseram-me: "Vais a pé, sem dinheiro, podes não regressar". E respondi: "Se
morrer enquanto caminhar pela paz isso será a melhor morte que poderei ter".
Assim, caminhei pelo Paquistão, Afeganistão, Irão, Azerbaijão, Arménia, Geórgia,
Rússia, Bielorússia, Polónia, Alemanha, Bélgica. Na França peguei um barco,
apoiado pelos habitantes de uma pequena localidade, e fui até a Inglaterra, onde
conheci Bertrand Russell. Ele me ajudou com os bilhetes de barco para Nova York.
Daí caminhamos até Washington, onde conhecemos Martin Luther King. Foi uma
demonstração de que podemos viver sem dinheiro e fazer a paz connosco, com as
pessoas e com a natureza. Neste momento, a humanidade está em guerra com a
natureza, estamos a destruí-la. E seremos perdedores se vencermos. A menos que
façamos a paz com a natureza não poderá haverá paz na humanidade.
Qual a sua maior preocupação?
A minha maior preocupação é que a humanidade não acorde a tempo de resolver
os desafios. Talvez estejamos demasiado obcecados com os nossos padrões de vida,
com a dívida, o dinheiro. A sociedade industrial tem lutado pelo crescimento
económico a todo o custo. Mas também tenho esperança na humanidade, num
despertar de consciências. Cada vez mais jovens me dizem que temos de cuidar da
Terra e que o crescimento económico não é suficiente, precisamos de bem estar.
Se as pessoas não estão bem, de que serve o crescimento económico? É um bom
começo. Até porque há abundância na natureza. Quantas azeitonas dá uma oliveira?
De uma única semente, lançada à terra centenas de anos antes, obtemos milhões de
azeitonas. Isso é a abundância e generosidade da natureza.
O alerta para a crise do meio ambiente tem mais de meio século. E
hoje o problema está longe do fim. É uma mensagem difícil?
As grandes mudanças controem-se lentamente. Quanto tempo demorou para o
apartheid acabar? Nelson Mandela esteve preso 27 anos. Mas o apartheid acabou. O
mesmo se passa com os direitos humanos. Quando estive com Martin Luther King, em
1964, os negros não tinham direito ao voto. Hoje temos um homem negro na Casa
Branca. E quanto tempo demorou para o muro de Berlim cair? Muito tempo, uma luta
longa. Não sabíamos quando o muro iria cair, quando o apartheid iria acabar. Não
precisamos saber. Estamos construindo um movimento ambiental e o momento vai
chegar.
De que precisamos para ser felizes?
Aprender uma única palavra: celebração. Temos de celebrar a vida, a natureza,
a abundância humana. As pessoas não são felizes porque não têm tempo para
celebrar. Estão sempre ocupadas, vivem demasiado depressa. Os maridos não têm
tempo para as mulheres e as mulheres não têm tempo para os maridos. Os pais não
têm tempo para os filhos. As pessoas não têm tempo para celebrar a natureza. É
preciso caminhar mais devagar abrandar para chegar mais longe, apreciar o que
temos em vez de ignorar o que já temos e querer mais. Temos muita roupa no
armário, mas ignoramos esse fato e vamos ao shopping comprar mais. O mundo tem o
suficiente para as necessidades das pessoas, mas não para a sua ganância, já
dissera Mahatma Ghandi. O universo é um grande presente para nós todos."
2 comentários:
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