sábado, 23 de novembro de 2013

A Não-Inscrição em Portugal



Sou portuguesa. Nasci dois anos antes do 25 de Abril. Não me lembro desse tempo. Era demasiado pequena. Mas sei e sinto que esse tempo não foi bem aproveitado, nem bem vivido e explorado, para a reconstrução de um país, apoiado até então, nos valores de uma ditadura que durou 48 anos. As mentalidades não se reconstruíram, não se reergueram, não melhoraram, antes pelo contrário. Aquela teria sido a oportunidade perfeita para o fazer mas foi desperdiçada. Lamentavelmente desperdiçada. Hoje pagamos todos o preço dessa oportunidade perdida. Os portugueses não sabem o que é viver em democracia, não sabem que liberdade implica, sobretudo, muita responsabilidade e participação activa nos interesses colectivos do país.

José Gil, um dos grandes pensadores do nosso tempo, publicou em 2004 o seu livro "Portugal, Hoje - O Medo de Existir". Um livro que recomendo pela sua eximia caracterização do povo português, e pela sua acutilância pertinente.

É um livro que nos faz reflectir sobe nós próprios enquanto indivíduos e enquanto membros do colectivo que é Portugal.

Neste livro o autor fala amiúde da não-inscrição dos portugueses. Conceito que poderia ser traduzido pela inércia, pela passividade, pelo "deixa-andar" em que os portugueses, de um modo geral, vivem. À espera sabe-se lá do quê ou de quem, que os venha salvar e redimir das suas dores, queixas e reclamações de botequim.

Talvez até pudéssemos dizer, em abono do povo português, que até há poucos anos, não havia em Portugal muitas formas de acção participativa do povo na vida do país, excepto as tradicionais formas de militância politica ou actividade sindical. Hoje isso está longe de ser verdade. Hoje a grande maioria dos portugueses tem acesso, no conforto do seu lar, a formas de se manifestar e de apoiar as causas mais diversas e importantes. Falo da internet, dos fóruns, das páginas do governo, das petições online, das redes sociais.

Mas infelizmente, mesmo com a existência dos meios e o acesso a eles, os portugueses escolhem não participar na defesa dos interesses colectivos. Não participar no futuro do país que vão deixar para os seus filhos, não participar simplesmente...

Um exemplo disso está expresso na imagem que aqui coloquei e que mostra , claramente, a não-inscrição dos portugueses. Pela imagem podemos constatar que pedir a demissão do presidente da FIFA é importante para 134. 000 portugueses, enquanto dizer não à privatização da água em Portugal só é importante para 1029 portugueses.

Que prioridades são estas? Que interesses são estes? Quando a água for privatizada e o seu preço aumentar em 400%, quando a sua qualidade piorar e lhe colocarem aditivos prejudiciais à saúde é o Cristiano Ronaldo que nos vai resolver a questão?

Valeria a pena pensarmos nisto!

Termino com um excerto, muito a propósito, do livro de José Gil, mencionado acima:

"Com efeito, no tempo de Salazar «nada acontecia» por excelência. Atolada num mal difuso e omnipresente, a existência individual não chegava sequer a vir à tona da vida. E o que era uma vida, nesse tempo? Aquilo que ditava o ideal moral do salazarismo: uma sucessão de actos obscuros, com tanto mais valor quanto se faziam modestos, humildes, despercebidos... Onde inscrevê-los, se não havia espaço público e tempo colectivo visíveis; onde, senão na eternidade muda das almas, segundo a visão católica própria de Salazar?
Nisso, como em tantos outros aspectos, o Portugal de hoje prolonga o antigo regime. A não-inscrição não data de agora, é um velho hábito que vem sobretudo da recusa imposta ao indivíduo de se inscrever. Porque inscrever implica acção, afirmação, decisão com as quais o indivíduo conquista autonomia e sentido para a sua existência. Foi o salazarismo que nos ensinou a irresponsabilidade - reduzindo-nos a crianças, crianças grandes, adultos infantilizados."  



2 comentários:

alf disse...

ESta crise vai acabar por resolver o problema, tenho esperança - as pessoas vão começar a perceber que se não defenderem os seus interesses, serão espoliadas.

No meu tempo, ensinava-se na escola aos meninos que eles eram burros, ignorantes, incapazes e que felizmente havia quem velasse por nós; acho que isso se tornou um traço cultural marcante.

Fátima Lopes disse...

Pois é Alf,

Infelizmente o povo português vive à espera que alguém mais sábio tome conta dele. Somos os eternos "coitadinhos" e não sei se a crise vai ser suficiente. Até aqui não tenho visto progressos nesse sentido. Vejo gente apática, conformista e mediocre. É o que eu vejo. Tenho pena que assim seja. O nosso país poderia ser mais, muito mais.

Abraço Alf,

Obrigada pelo seu comentário.

Fátima Lopes